Um dois três... quem quer jogar comigo à macaca? Tardes quentes, escadas dos vizinhos marcadas a giz e eu por ali. Pé no ar, 1, 2, 3...
Tanto joga que mete o pé para dentro dizia meu pai. E eu feliz! Naquela rua sem saída que se fechava com a nossa casa. A porteira para o quintal, o passadiço viçoso cheio de florzinhas lilás e depois a amplitude de três arretos, o último dos quais era o reduto da minha mãe. Uma horta super organizada matematicamente estruturada rectângulo a rectângulo. Havia também a parte dos morangos que se espraiava todos os anos a conquistar terreno.
Meu pai nunca gostou da agricultura. Fazia e sabia fazer mas não gostava. Tal como eu! O corpo doía pela noite dentro depois de dias cheios de actividade.
Eu também não gostava de porcos nem dos gritos deles pelas noites de Inverno quando morriam às mãos dos homens para encherem salgadeiras de carne que pouco a pouco ganhava a cor amarelada do tempo.
Naquela rua sem saída aprendi a ser feliz com pouco, contando comigo e com os meus sonhos. Cantava muito e ria muito porque os meus sonhos e a minha imaginação me chegavam. Aos Domingos havia o ritual das regas. Manhã no quintal, à tarde regar as árvores. Algumas das quais arderam agora tirando sentido a tanto esforço, balde de água cheio, vezes sem conta, para despejar em cada uma delas. E eu pequena quase sem poder com ele. Regressava a casa sozinha, como eu gostava, imaginando um mundo só meu onde era possível falar com a natureza.
As sestas de Verão na frescura dos quartos interiores e o silêncio. As saudades do pai. A alegria das suas chegadas!
Os Natais com neve, que não permitia que se saísse de casa o que obrigava a conversas longas e a meiguices curtas e envergonhadas porque um beirão nunca se derrama em gestos de carinho só porque sim.
Por aqueles lados, mostra-se o amor sendo para o outro. E basta ser para o outro. Basta pensar no outro e adivinhar o que o fará feliz. E fazê-lo. O amor para um beirão dá sempre muito trabalho porque nunca se resume a palavreado. É necessário trabalho, acção, dedicação!
A minha avó a viver connosco e que permitia que eu deitasse a cabeça cansada no colo dela, as duas sentadas ao lume, com as mãos enrugadas por cima da minha cabeça. Sempre conheci a minha avó de preto e com as mãos enrugadas. Mas como sabia bem tê-la ali para tudo! Chorava de medo de perdê-la. Um dia, já eu adulta, cansou-se de viver e nunca mais saiu da cama. O que deixou em mim para sempre, além das saudades sem fim, foi tanto e tão importante que seria impossível de escrever. Lembra-me o sorriso, o bom senso, a sabedoria e uma certa altivez que me dá graça.
A minha mãe sempre a trabalhar! São poucas as recordações dela parada, descansada, repousada. Sempre em movimento, sempre empenhada em levar os filhos longe, sempre acreditando no trabalho como o melhor remédio para todos os males. Estava triste, trabalhava, estava stressada, trabalhava até que o corpo já não podia mais e o dia acabava.
A escola do outro lado da aldeia. Companheiras em salas grandes e frias que foram ficando pelo caminho e agora reencontro como avós felizes. Aquele espaço, disse sempre minha mãe, era para aprender e assim foi. Sempre a primeira da classe porque tinha de ser. Não havia espaço para falhas.
Nas férias regressava a casa o Sr. Hélio, nosso vizinho que passava o resto do tempo no sanatório da Guarda. Minha avó não nos deixava aproximar dele e ainda hoje vejo estendidos na corda da roupa os lenços de assoar vermelhos que ele usava. Estranhava a cor mas apenas isso. Nunca ninguém me explicou a razão porque não eram brancos como os de lá de casa.
Anos mais tarde partiram os nossos vizinhos do outro lado da rua para a América. Choraram todos muito e eu não percebi porquê. Nessa noite de partida eles já sabiam que nunca mais voltariam ali, como aconteceu.
Depois veio para uma das nossas casas a Sra Aida. Mulher boa, muito boa mesmo, que a primeira coisa que pediu foi para lhe cortarem a electricidade porque não tinha dinheiro para a pagar. Minha mãe não o fez e pagava-a ela. Eu escrevia-lhe as cartas para as filhas que viviam em Lisboa para onde tinham partido ainda crianças. Um dia, uma delas deu-me uma chávena com pires como recompensa pelas horas semanais em que retirava da caixa o caderno, escrevia o que ela ditava metendo no envelope com selo as poucas notícias da terra e da vida.
Um dia, por tricas sem importância, a minha mãe esfriou a relação com ela. Tive imensa pena. Coisas de mulheres e de filhos. Cada uma pelos seus como deve ser. Depois, foi viver para o lar. Gostei sempre muito dela e tenho pena de não a ter visitado mais vezes e de não a ter acompanhado até ao fim.
Aos 10 anos parti para Coimbra. De um dia para o outro passei de uma rua sem saída que a minha casa fechava, para grandes avenidas em construção, prédios muito altos, escola com turmas com meninas que nada me diziam porque a vida delas era tão diferente que não havia nada para pôr em comum. Pouco a pouco fui observando um novo modo de viver. O meu pai comprou um andar e deixámos de ter quintal durante a maior parte do ano. Contratámos um leiteiro e um padeiro como víamos os vizinhos fazer. Na mercearia perguntaram a minha mãe se queria um rol e ela ficou chocada e respondeu: eu pago sempre o que compro no momento! E pronto!
A vida na aldeia começava com a chegada do Verão mas já nunca mais foi a mesma coisa. Só o trabalho continuava. Agora o meu coração começava a prender-se à cidade, aos amores de juventude, às saudades dos cafés, dos amigos, das quadras de ténis que entretanto comecei a frequentar.
Já não pertencia verdadeiramente a lugar nenhum!
Como ainda hoje me sinto. Como me sentirei sempre.