domingo, 5 de janeiro de 2025

Somos o que vivemos

 


Ontem, ria-me com a minha irmã ao relembrar episódios de quando era pequena e vivia numa aldeia perdida da Serra da Estrela, onde nasci. Não são episódios de felicidade mas quase parecem saídos de um filme, pelo seu pitoresco, visto a uma distância de 50 e muitos anos. Cheia de personagens icónicas que fizeram e ainda fazem parte do meu imaginário, pelo que eram, pelo que algumas delas sofreram e pelo modo como viviam a sua vida. Podia escrever mil e um posts sobre cada uma delas. 

Talvez destas vivências tenha resultado o meu grande optimismo face à vida e às coisas. Já vi tanto, já assisti a tanto que pouco ou nada me faz vacilar. Naquela época, as crianças  não eram poupadas a nenhum cenário, desde visitar a tia em último grau de demência, até velórios macabros e visitas a doentes terminais com tudo o que acarretava. Se alguém morria sem ser velho e as crianças perguntavam o porquê a resposta vinha pronta: enforcou-se. Era algo comum naquela época em que o SNS não existia e os médicos serviam uma classe que podia pagar. A pobreza era mais visível no Inverno, quando a neve cobria todos os recursos. A madrinha velha como todos lhe chamávamos, irmã mais velha da minha avó materna, solteira e com posses, distribuía medicamentos por todos os que sofriam para alivio das dores do corpo e da alma! Ainda há pessoas que se lembram disso. O famoso Saridon. Se fosse actualmente...

O álcool era  o refúgio para os pensamentos menos bons e para a pobreza instalada, principalmente nos homens. Aos Domingos, era típico vê-los a cambalear rumo a casa no final da tarde. Durante a semana seguinte, a minha mãe ouvia as mágoas das mulheres deles, as sovas que levavam, o sofrimento na criação dos filhos que lhes faziam nessas noites atormentadas pelo álcool e pelo medo do futuro. Nessas alturas e para manter a dignidade de quem falava, minha mãe mandava-nos sair da cozinha e fechava a porta mas nós, na sala, ouvíamos  o que já todos sabiam. 

Estas mulheres e homens com quem cresci, já faleceram mas quando encontro os filhos vêm à memória todas estas vivências  e como o modo como foram criados os transformou em homens e mulheres lutadores e bem dispostos. Sabem dar valor ao que têm e principalmente à vida. Admiro-os por isso.

Tive a sorte de não ter vivido estes dramas mas assisti a tudo e, por vezes, a minha alma de criança muito nova, não conseguiu assimilar todo o drama do que vi e senti. Só agora, pensando bem e comparando com o tempo presente vejo e sinto o que cada um daqueles seres humanos viveu para sobreviver.

Aos 10 anos vim viver para Coimbra. Já mais velha, consegui perceber que os problemas também ali existiam em casas mais arranjadas mas em que faltava muita coisa. Era mais velada a miséria. Lembro-me da vizinha do 2º andar que ia ao mercado e trazia sempre um ramo de flores mas, durante a semana, pedia os bens essenciais à minha mãe que os ia fornecendo. Uma postura diferente mas a mesma fragilidade. Aqui era necessário esconder. Na Serra não era possível e ninguém queria saber de flores em jarras. 

Também aqui existiam as más relações, o adultério e as doenças. Era quase tudo igual mas embrulhado em luvas de pelica que obrigavam a uma visão  mais apurada. 

É a vida como costuma dizer filho mais velho. 

Há dias em que tudo me lembra mais. A quantidade de episódios que eu já vivi, as mil e uma vidas por que passei, os ambientes diferentes que tive de enfrentar. Como ser pessimista se consegui chegar aqui?

Obrigada pais e irmãos pela família boa que criámos,  que me educou e me deu esta postura forte com a certeza de que conseguirei enfrentar o que vier. 

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