terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sentir o Natal


Veio a noite de Natal, geométrica e límpida, como um grande cristal negro. Veio o dia de Janeiro, fresco, original, vieram os Reis Magos e a magia dos seus cantos. Aqui, neste quarto nu em que escrevo, relembro agora tudo com emoção. À dor do que passei mistura-se incrivelmente uma saudade irremediável para nunca mais. Não bem, concretamente, por este instante ou aquele, mas apenas porque a tudo envolve um halo estranho, agora que tudo me vibra na memória. (...) Assim é quase com remorso que sinto o apelo que vem das naves da igreja, relembro o frio das geadas,no conforto imaginado de um fogão. um canto sobe de novo de uma brancura distante, abre pelo céu, desdobra-se como um sol pela manhã. Relembro a ceia quente à meia noite, o frio branco e filtrado que me banhava a face ao abrir uma janela, recordo a grande fogueira de um tronco de árvore morta, que ali no adro se ergueu. Depois, a memória dispersa-se por instantes avulsos, mas percucientes como ciladas ao dobrar de uma esquina. E assim, ouço repetidamente na aridez das tardes de Inverno,os tamancos solitários regressados dos campos,ressoando nas pedras do adro, ou a tosse dos que passavam nas madrugadas ásperas; rememoro os vultos dos homens, parados à beira da estrada, virados para a montanha, numa conversa muda com o Tempo; relembro a poeira fina das geadas nas sombras dos caminhos, a alegria intrínseca e serena das manhãs fumegando ao sol, os ventos siderais, encapotados de negro, vindos dos medos da serra, saqueando bruscamente toda a aldeia...
Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas a um apelo de abandono, a um esquecimento real, a bruma da distância levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas comovente...
in Manhã Submersa de Vergílio Ferreira

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