Que já esqueceu o amor que viveu com o meu pai, que não o reconhece nas fotos, que não se lembra do amor que ainda me tem e o esconde nos olhos mortiços e parados que nada transmitem. Em nome de todos os sentimentos que me assolaram quando, já noite, parti sozinha de perto dela, olhando pela milésima vez a paisagem da infância e sentindo que NUNCA , mas nunca mais seria a mesma coisa!
Fiz ontem as contas e foram mais de trinta mil os dias em que
adormecemos e acordámos juntos, na cama onde agora te escrevo e de onde
espero sair para ir de novo até ti. Trinta mil dias a olhar-te dormir, a
saber o frio ou o calor do teu corpo, a perceber o que te doía por
dentro, a amar cada ruga a mais que ia aparecendo. Trinta mil dias de eu
e tu, desta casa que um dia dissemos que seria a nossa (que será de uma
casa que nos conhece tão bem quando já aqui não estivermos para
a ocupar?), das dificuldades e dos anseios, dos nossos meninos a correr
pelo corredor, da saudade de nos sabermos sempre a caminho de sermos só
nós. Trinta mil dias em que tudo mudou e nada nos mudou, das tuas
lágrimas tão bonitas e tão tristes, das poucas vezes em que a vida nos
obrigou a separar (e bastava uma tarde longe de ti para nem a casa nem a
vida continuarem iguais). Trinta mil dias, minha velha resmungona e
adorável. Eu e tu e o mundo, e todos os velhos que um dia conhecemos já
se foram com a velhice. Nós ainda aqui estamos, trinta mil dias depois,
juntos como sempre. Juntos para sempre. Trinta mil dias em que
desaprendi tanta coisa, meu amor. Menos a amar-te.
Pedro Chagas Freitas - Prometo falhar
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