terça-feira, 17 de novembro de 2015

Histórias que me apetece partilhar


A Sra A.  e o marido vieram para uma casa colada à nossa quando eu ainda era criança. Muito boa pessoa, com uma candura que contrastava com a brusquidão do marido. Viveu quase connosco durante anos. As filhas  já eram grandes e tinham partido. Viviam pobremente como a maioria das pessoas na aldeia. Uma das primeiras coisas que a Sra A. pediu à minha mãe quando entrou em casa foi que cortasse a electricidade porque não conseguia pagá-la. A minha mãe não a cortou! 
Havia episódios na vida daquela amiga que me chocaram durante anos. Houve alturas da vida dela em que a pobreza a fez endoidecer e em que teve de ingressar no hospital. Ela lembrava-se do colete de forças e de vez em quando falava desses tempos. Coincidiu com o crescimento das filhas com a doença das quatro ao mesmo tempo e de não ter dinheiro para as tratar a todas. Escolheu a mais nova para tomar os poucos medicamentos que conseguiu comprar. As outras, mais velhas, sobreviveram porque tinham um bom sistema imunitário. 
Não sabia ler nem escrever e era eu que, com 8 ou 9 anos, lhe escrevia as cartas para as filhas que estavam longe. Quando ela  pedia, sempre ao serão,  eu levava a minha caixa de papel e  envelopes, sentava-me num banco à lareira e ela ditava tudo aquilo que queria transmitir.  A casa era nossa mas eu via aquela cozinha de forma diferente com o arranjo que dava às prateleiras com frisos de papel coloridos que muitas vezes eu ajudava a colocar. Um dia, as filhas ofereceram-me como recompensa uma chávena de porcelana que eu guardei religiosamente durante anos.
Tinha um sorriso doce apesar da vida e das dificuldades. A minha mãe e ela eram amigas. Um dia, por uns ditos que envolviam terceiros zangaram-se e nunca mais nada foi igual. A minha mãe não perdoou. Hoje penso que o deveria ter feito honrando tantas  horas e dias em conjunto. 
Tive pena. Muita pena por não ter acompanhado a sua velhice no lar com a assiduidade que tantos anos de convívio merecia.
Partilho quase como pedindo perdão por não ter sabido honrar  tantos anos de amizade e de convívio. Era nova mas não funciona como desculpa. 
Tenho pena de ela ter morrido sem lhe ter dito um adeus especial e de lhe ter demonstrado o quanto gostava dela e da sua doçura.

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